Um país da América Latina passando por uma ditadura militar rigorosa, com direito à censura e a desaparecidos e que trouxe desenvolvimento econômico para os mais ricos. Esse é contexto de De amor e de sombra e, provavelmente, o pano de fundo preferido de Isabel Allende para seus livros. Resquício dos muitos anos de exílio que a chilena viveu na Venezuela e na Argentina.
O segundo livro lançado de Allende, em 1984, encanta pelo enredo: uma jornalista que vai atrás das pautas mais inusitadas, cega para as atrocidades do sistema, conhece um psicólogo que é obrigado a procurar outro emprego e vira fotógrafo. Irene e Francisco são colegas de trabalho e a paixão dele pela jovem extravagante e desinibida logo fica visível. O empecilho do romance é o noivo que Irene tem desde a adolescência: um militar de barriga tanquinho que está sempre em expedições fora do país.
Em paralelo, aparecem os Ranquileo, família pobre do campo com um patriarca que trabalha como palhaço em circos itinerantes no verão. A única filha do casal possui os dons clarividentes que Isabel Allende sempre inclui em seus livros. Evangelina, a menina, tinha alucinações sempre ao meio-dia, quando ela gritava fora de si e caía uma chuva de pedras invisíveis no telhado de casa. Logo foram atribuídos milagres para a "santa" e essa foi a pauta que Irene resolveu cobrir, unindo as duas histórias. A jornalista e o fotógrafo, durante a apuração, são testemunhas da invasão de militares que levam a jovem clarividente para a delegacia. Os protagonistas começam a investigar o sumiço da adolescente depois desse episódio.
Nessa parte, Francisco e Irene são dois heróis impulsivos que conseguem tudo o que querem. Irene mesma parece a melhor jornalista latina, que têm acesso aos lugares mais improváveis num país que vive uma ditadura pesada. Também possui os melhores truques para ouvir o que quer. Infelizmente Isabel Allende não dá essa aula de jornalismo e as manhas ficam subentendidas.
Logo no início, a proeza da escritora chilena em construir personagens impressiona. Assim como, em Jane Austen, você lê sobre cada gesto sutil das meninas do campo inglês e não se importa, em Isabel Allende você se pega lendo a biografia de toda a família de cada um dos protagonistas e não perde nada pela leitura ser desviada da ação central. Até aí De amor e de sombra é um típico romance allendiano: se passa na América Latina, têm uma crítica forte aos militares num contexto político, dons clarividentes e imigrantes. Quando você menos se dá conta, Isabel Allende dá lugar a uma autora de livros bobos infanto-juvenis e descreve uma cena de sexo assim: "uma formidável represa explodiu em seu ventre e a força dessa torrente o sacudiu, inundando Irene de águas felizes". É possível relevar essa descrição e continuar, mas a leitura acabou sendo um tanto entediante do meio para o final. O que salvava eram os flashbacks dos pais de Francisco que contavam suas aventuras de exilados fora da Espanha. Apesar de ter um final decente, a ação perde todo o sabor que tinha antes e as palavras contam tudo muito apressadas.
Isabel Allende conseguiu em De amor e de sombra escrever parte de sua biografia no casal protagonista. Irene era o lado da jornalista feminista de uma família tradicional. Francisco era o lado B: o humanista que ajudava opositores perseguidos pelos militares a fugirem do país e seguirem ao exílio. O que Isabel não sabia quando escrevia essa história é que Irene também teria um pouco de Paula, sua filha, na época com 21 anos. Irene e Paula ficaram internadas por algum tempo por problemas sérios, drama contado no livro Paula. Foi durante o coma da filha que Isabel ficou próxima de seu genro, que morava em outro país. Assim como Francisco só teve um contato maior com a mãe de Irene, que o odiava, quando a jornalista corria risco de vida. Isabel Allende deu um final feliz para Irene e, nem assim, conseguiu mudar seu destino. Perdeu Paula oito anos depois.
8 comentários:
Ei Lu! Eu nunca li Isabel Allende!
Livros sobre histórias de jornalistas lembrei na hora de Plano Perfeito, do Sidney Sheldon, já leu??
Beijos!
Morro de vonatde de ler Isabel Allende, porém, quando me deparo com a orelha, sinto que não faz meu estilo, não é ainda a hora certa. Foi assim que me enganei com Clarice.
Beijão.
Ótima resenha, Luh! Preciso criar vergonha e me iniciar logo em Isabel Allende. Tenho o Paula aqui em casa há uns dois e até hoje nunca li. Fail pra mim! huhu
beijo
Cara taí uma falha terrível na minha história literária: eu NUNCA li Isabel Allende. E olha que só ouço coisas maravilhosas a respeito dos livros e da história de vida dela. Boa dica.
Beijos!
Acho corajoso escrever histórias com referências autobiográficas. Todas as que eu escrevi, ficaram pela metade. Eu travei em todas elas.
Sua resenha ficou ótima, muito muito boa. Dá vontade de ler o livro, apesar de ter ficado bem claro quais são os pontos falhos...
beijo!
a história da revolução no chile é provavelmente a pior dentre todas essas atrozes da américa latina. o país que chegou mais perto de um regime livre e o que mais mergulhou no caos. e a allende é testumunha viva disso. preciso ler mais dela, apesar do tempo não permitir.
são livros como esses que me fazem ter vontade - de novo - de ser uma dessas heroínas. um desses jornalistas que tiram o óculos, a gravata, e põe uniformes coloridos. acho bonito!
Luh, desde que te conheço vc sempre fala da Isabel Allende. Sei que vc é fã. Tenho muita vontade de ler, porque pelo o que vc fala eu acho que vou gostar. Mas eu ando tão sem-vergonha com as minhas leituras. Gostei muito da sua resenha.
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